terça-feira, 13 de julho de 2010

Por que sonhamos?


(Marc Chagall, Circo)

Essa pergunta tirava meu sono até que conversei com dois grandes especialistas no assunto: o cientista brasileiro Sidarta Ribeiro e o psiquiatra americano Allan Hobson. Reproduzo as entrevistas abaixo. Você vai ver que as abordagens deles são diferentes: Sidarta dialoga com a psicanálise, principalmente com a noção freudiana de que os sonhos são "restos do dia". De fato, os neurônios mais ativados durante o dia também são durante a noite.

Hobson, por outro lado, diz que os sonhos não têm nada de inconsciente. Ao contrário: são um processo mental consciente, aliás, hiperconsciente! Apenas não nos lembramos deles. Mas o psiquiatra afirma que o significado dos sonhos não importa tanto. Eles funcionam mais como um treino para o cérebro, uma espécie de pilates dos neurônios que nos prepara para o dia seguinte. É nesse ponto que os dois estudiosos coincidem: os sonhos simulam comportamentos, e assim nos ajudam a encarar a vida.

Minha conclusão: não dá para entender por que sonhamos levando em conta apenas a teoria psicanalítica. É preciso compreender como o cérebro funciona, algo que os cientistas de hoje sabem muito mais do que Freud sonhava em saber em sua época. Do mesmo jeito, a biologia sozinha não dá a resposta.

Eis a primeira matéria, que saiu no especial 30 Maiores Mistérios da Ciência, em novembro de 2009.

Por que sonhamos?

Das velhas teorias psicanalíticas à moderna neurociência, o que a ciência sabe sobre esse curioso fenômeno?

Em 1900, o austríaco Sigmund Freud causou uma revolução no estudo da mente ao publicar A Interpretação dos Sonhos. Nele, o pai da psicanálise contestava a noção bíblica de que os sonhos eram fenômenos sobrenaturais, dizendo que derivavam da psique humana. Decifrá-los, portanto, seria a chave para entender o que se passa dentro da nossa cachola. Essas teorias foram ridicularizadas por muito tempo e somente agora, mais de 100 anos depois, elas estão sendo testadas. 



A primeira idéia de Freud confirmada pela ciência é a de que os sonhos seriam restos do dia. Ou seja: algo que acontece com você de dia reverbera durante os sonhos. A comprovação científica disso foi feita em 1989 por Constantine Pavlides e Jonathan Winson na Universidade Rockefeller. Ao observar cérebros de ratos, eles descobriram que os neurônios mais ativados durante o dia continuavam a ser ativados durante a noite. Do mesmo modo, os neurônios pouco ativados durante o dia tampouco eram durante a noite. O que isso significa?

“Significa, por exemplo, que, se uma pessoa teve hoje uma experiência marcante, a chance de essa experiência entrar em seu sonho é muito grande”, diz Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN–ELS). “Se ela foi atacada por um tubarão, é provável que sonhe com tubarão. Se foi para a guerra do Iraque, nos próximos anos vai sonhar com guerra. Isso é o resto diurno levado às últimas conseqüências.” Mas, como em nossa vida moderna ninguém tem experiências extremas todos os dias, os sonhos acabariam sendo uma mistura simbólica de um monte de coisas, como Frued havia previsto. Você pode sonhar hoje com tubarão, a manhã com jacaré, depois com afogamento, simbolizando todos eles uma mesma experiência.

Mas de onde viriam aqueles sonhos malucos, com cenas que você nunca viu? Para a ciência, do seu inconsciente. É lá que estão guardadas as lembranças que você adquiriu ao longo da vida. Quando você dorme e começa a sonhar, seu sono entra na fase REM (sigla em inglês para Movimento Rápido dos Olhos). “O sono REM faz ovos mexidos com suas memórias. Ele as concatena de uma forma não comum”, diz Sidarta. Isso acontece porque o cérebro está em altíssima atividade nessa fase, mas não tem as informações sensoriais da vigília. Não conta com cheiros, imagens, sons nem outras informações que temos quando estamos acordados. A atividade sensorial está livre e vai aonde quiser, seguindo os caminhos mais usados – que são as memórias mais fortes. Ou seja: seus sonhos com imagens aparentemente inéditas seriam apenas combinações de uma série de símbolos que você já conhece de outras experiências.

Ok, mas sonhar serve para o quê? “Tudo indica que o sonho tem a função de simular comportamentos – tanto os que levam a recompensa (os bons) como os que levam a punição (os pesadelos)”, diz Sidarta Ribeiro. “Portanto, sua função seria evitar ações que resultem em punição e procurar aquelas que levam à satisfação do desejo.” Esse processo funcionaria da seguinte forma. Imagine uma cotia. Seu pesadelo é que a jaguatirica apareça quando ela estiver bebendo água. Assim, da próxima vez que for ao lago, essa memória voltará e ela terá mais cuidado (evitando a punição). E o sonho bom da cotia? É encontrar um campo com sementes gostosas. Portanto, se ontem ela passou num lugar que tinha sementes, seu sonho será ela voltando àquele lugar, pois talvez haja mais alimento a li amanhã (levando à recompensa). Essa tese combina, de certa forma, com a idéia freudiana de que a função dos sonhos é a satisfação do desejo.

Agora, a explicação de Allan Hobson (na foto abaixo, publicada na Super na edição de dez/2009). E, de quebra: por que não conseguimos lembrar dos sonhos...

Exercícios para o cérebro

Você não precisa se descabelar para interpretar seus sonhos, nem sofrer se não consegue se lembrar deles. Segundo o psiquiatra americano Allan Hobson, da Universidade de Harvard, a principal função dos sonhos é fisiológica: eles são exercícios para o cérebro. Agem como programas que rodam em nossa cachola para mantê-la atualizada, e assim nos preparam para despertar. Surpresa: não tem nada de inconsciente nisso.

Por que sonhamos?

Porque o cérebro é ativado enquanto dormimos. Até o século 20, pensava-se que o cérebro desligava durante o sono. Hoje sabemos que ele nunca desliga totalmente e que se ativa de novo durante a fase REM [Movimento Rápido dos Olhos, quando acontecem os sonhos mais intensos]. Essa ativação é interna: como praticamente não entram estímulos do ambiente, o cérebro faz tudo por si só. As imagens dentro dele são tão vívidas que ele pensa que está acordado. E só porque temos dificuldade de nos lembrar delas é que achamos que sonhar é um estado inconsciente – como dizia Freud.

E não é?

De forma alguma. É um processo mental consciente, que ocorre durante o sono, e que simplesmente não é lembrado. Sonhar é hiperconsciente: os surrealistas diziam que seus sonhos eram mais intensos do que estar acordado.

Por que é tão difícil lembrar dos sonhos?

Porque a química do processo de ativação cerebral também muda durante o sono. Durante a vigília, são secretados altos níveis de substâncias chamadas neuromoduladores [que influenciam as conexões do sistema nervoso]. Porém, quando o cérebro se ativa no sono REM, três delas são “desligadas”: serotonina, norepinefrina e histamina. E como nossa memória é altamente dependente delas, a maior parte dos sonhos não é registrada. Para se lembrar, você precisa acordar e “ligar” essas substâncias de novo.

Quer dizer que o sonho é um estado de consciência paralelo?

Exato. Eu faço a distinção entre a consciência do sonho (primária) e a consciência na vigília (secundária). Quando despertos, nós somos conscientes do mundo exterior e de nos mesmos. Temos memória, organizamos pensamentos e controlamos percepções e emoções. Ao sonhar também somos conscientes: temos percepções e emoções, embora não reconhecemos que tudo não passa de um simulacro, às vezes bem bizarro. O importante é que a consciência do sonho nos prepara para a consciência na vigília.

De que forma?

Os sonhos reprogramam o cérebro e atualizam nossa capacidade de nos mover, pensar, sentir. São como exercícios do cérebro, que você pratica pelo menos 1 hora e meia por noite. Eles ligam atividades sensoriais e emoções, antecipando a vigília. Apenas a memória não é ligada.

Então não importa se a pessoa não se lembra do sonho?

Do ponto de vista psicológico, lembrar do sonho pode até ajudar você a entender algo. Mas do ponto de vista do cérebro, não é importante. Conheço muita gente competente que nunca se lembrou de nenhum sonho. É como numa caminhada: você não se lembra de cada passo que deu, mas o corpo sabe que se exercitou.

Muitos autores dizem que a experiência determina os sonhos. Quem está na guerra, por exemplo, provavelmente sonha com guerra.

Sem dúvida as experiências têm algo a ver com o sonho. Mas você se conhece e sabe que isso não é tudo, certo? Há sonhos de todo tipo: felizes, tristes, ansiosos, sexuais... E até onde sabemos, só uma pequena parte é determinada pela experiência. Muitos são determinados por seu cérebro. Ele não sabe se você será atacado ou seduzido amanhã, por exemplo, e por isso precisa se preparar para tudo. Então, ele roda todos os programas quando você dorme. Mesmo numa guerra, a pessoa ainda pode sonhar com coisas que aconteceram 20 anos antes ou que nunca aconteceram. Portanto, não é que as experiências sejam irrelevantes, e sim que muitas delas são antecipadas e guiadas enquanto dormimos.

O Sr. diz que os sonhos ajudam em nosso desenvolvimento. Por quê?

O sono REM ocorre já no último trimestre da gravidez. Ou seja: antes mesmo de você nascer, seu cérebro é ativado e um tipo consciência primária acontece. E o objetivo desse estado de consciência primordial, que foi esquecido, é ativar o cérebro de uma forma muito parecida como será ativado na vigília. No primeiro ano de vida, você passa várias horas por dia com essa ativação cerebral. Ela organiza seus neurônios, estabelece as conexões, enfim, faz todo o necessário para que você possa ir à escola depois.

O Sr. tem algum sonho recorrente?

Estou andando de bicicleta em Londres e tenho na garupa uma tesoura de poda de árvore. O que estou fazendo ali? Por que isso está acontecendo? Será que devo fazer uma interpretação simbólica desse sonho? Ou pensar: eu não ando mais de bicicleta, mas meu cérebro ainda sabe fazer isso. Meu cérebro supõe que seja em Londres – olhando para os ônibus de 2 andares – e tudo isso é parte de minha consciência antecipatória. Por que levo uma podadeira? Freud diria que tem a ver com castração ou ansiedade. Mas provavelmente a podadeira é uma lembrança que está no meu cérebro e que emerge numa combinação aleatória por motivos que não entendemos completamente.

Se os sonhos não são psicológicos...

Não digo isso. Digo que agora conhecemos a base fisiológica dos sonhos, o que não significa que eles não tenham significado psicológico. É tentador para muitos jornalistas escrever que minha teoria é anti-freudiana. Mas o ponto é: muito do que sabemos agora sobre o funcionamento do cérebro Freud não tinha como saber em sua época, apesar de ter sido brilhante. Assim, muitas hipóteses psicológicas sobre os sonhos são restringidas pelo que sabemos hoje.

Quais os grandes mistérios que ainda restam sobre os sonhos?

Um deles é como eles são usados pelo cérebro em desenvolvimento para criar um cérebro maduro. É muito difícil fazer experimentos sobre isso. Antes, todos pensavam que os sonhos tinham de ser interpretados. Eu penso que eles têm de ser descritos. Por exemplo, há alguma lógica neles? Que tipo de lógica? Há muito a descobrir sobre a forma dos sonhos, que foi ignorada até agora para dar lugar a interpretações sobre o conteúdo.

7 comentários:

  1. Achei muito interessante o artigo, os sonhos sempre vão ser um dos grandes mistérios da mente humana. E falando de sonhos, não perca La Vida es Sueño, no Teatro San Martín.

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  2. Hola Matías,
    legal que gostou. E obrigado pela dica da peça, vou lá seguro.
    Abraço!

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  3. Dudu, amado, da tia!
    Já li, reli e confesso: agradei nauummm rsrs. Tudo bem que os neurocientistas têm muito mais a acrescentar do que Freud no século XIX. Mas não é desconsiderar a 3ª grande ferida narcísica, vivida pelo HOMEM? Narcisistas como somos rsrs, o reconhecimento do Inconsciente é "ressentida" muito mais do que Copérnico e Darwin agarradinhos.
    Beijuuss

    www.toforatodentro.blogspot.com

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  4. Simplesmente amei, ainda hoje perguntei ao meu marido sobre sonhos. Muito louco chegar em casa e ler isso. beijos

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  5. BOA TARDE!
    GOSTARIA DE SABER COMO EXPLICAR TER UM SONHO E ACORDAR COM O EFEITO DELE TIPO ASSIM:
    TIVE UM SONHO ESSA NOITE QUE ESTAVA COMENDO UM PEIXE MUITO RUIM COMO SE TIVESSE MOFO ÓLEO QUEIMADO E POR AI VAI, ACONTECE QUE ACORDEI COM O GOSTO NA BOCA E FICOU MESMO DEPOIS DE TER ACORDADO TIVE QUE LEVANTAR E COMER ALGO QUE TIRASSE O GOSTO MESMO DEPOIS DO LEITE COM MEL AINDA FIZ VOMITO E DORMI COM UM GOSTO MAIS LEVE.
    DEVO PROCURAR UM MÉDICO?

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  6. BOA TARDE!
    GOSTARIA DE SABER COMO EXPLICAR TER UM SONHO E ACORDAR COM O EFEITO DELE TIPO ASSIM:
    TIVE UM SONHO ESSA NOITE QUE ESTAVA COMENDO UM PEIXE MUITO RUIM COMO SE TIVESSE MOFO ÓLEO QUEIMADO E POR AI VAI, ACONTECE QUE ACORDEI COM O GOSTO NA BOCA E FICOU MESMO DEPOIS DE TER ACORDADO TIVE QUE LEVANTAR E COMER ALGO QUE TIRASSE O GOSTO MESMO DEPOIS DO LEITE COM MEL AINDA FIZ VOMITO E DORMI COM UM GOSTO MAIS LEVE.
    DEVO PROCURAR UM MÉDICO?
    UM SONHO PODE ME MATAR?

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  7. Bom post. Também tenho contribuições sobre esse assunto: http://criteriorevisao.com.br/por-que-sonhamos/

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