quarta-feira, 28 de julho de 2010

As livrarias mais charmosas de Buenos Aires


Elas não têm o maior acervo, não estão na avenida Corrientes e nem encabeçam a lista dos guias que você encontra no aeroporto. Mas são de longe as mais acolhedoras. Como toda lista é injusta, escolhi apenas duas. E começo logo pela minha preferida.

# 1 Eterna Cadencia
São meus metros quadrados favoritos da cidade. Uma típica casa chorizo ("casa linguiça"), cujos cômodos dão todos para o pátio. Construções assim eram comuns em Buenos Aires na virada do século 20, quando imigrantes italianos incrementaram a demanda por moradia. Cada família ocupava um cômodo, e o pátio servia de ligação entre todas as partes, inclusive a cozinha e o banheiro. A Eterna Cadencia cobriu o pátio e o transformou num bar climatizado.

De vez em quando levo o computador e fico trabalhando lá. Não sou o único: muita gente passa horas nesse espaço, que oferece wi-fi grátis, excelente café cortado e medias lunas rellenas. A atenção é de primeira. Se não quiser consumir, tudo bem, ninguém vai te incomodar. A casa serve almoço também - outro dia comi um belo risoto de frango.

Ah, não falei dos livros. O primeiro salão (foto acima) tem literatura, títulos de arte, guias, ensaios e as obras publicadas pela editora da casa - coisa boa, por sinal. Essa é uma das poucas livrarias da cidade que contam com livreiro, a pessoa que realmente conhece cada palmo do acervo e sabe orientar o cliente. Já passei muita raiva em redes de livrarias como Cúspide e Yenny, onde a maioria dos vendedores só sabe buscar por "título" ou "autor" no computador da loja. Ficam perdidos quando você pede uma obra sobre algum tema específico.

No último salão da Eterna Cadência, os livros estão deliciosamente bagunçados sobre a mesa. Outros tantos abarrotam o corredor. Eu gosto dessa sensação de intimidade com os livros. E se você quiser passar um tempinho lendo alguns deles, a dica é escolher o belo sofá da parte de trás do pátio, que dá para o banheiro (impecável, aliás).

A Eterna Cadência (Honduras, 5574, Palermo Hollywood, 4774-4100)
De 2ª a 6ª, de 11h30 às 21h; sábado, de 11h30 às 20h. Domingo fecha.
Como ela fica do outro lado da avenida Juan B. Justo, o melhor é ir caminhando ou de táxi pela rua Honduras, pois só ela dá acesso para cruzar a via de trem. De noite, esse lado parte da cidade oferece restaurantes bacanas, o que será assunto para outro post.


Combina livraria, bar e uma lojinha de disco bem descolada. Frequento desde 2004, quando ainda se chamava Boutique del Libro. Eu costumava ver ali o ex-prefeito Jorge Telerman tomando café e lendo jornal. O acervo é amplo e os vendedores são do ramo, bem focados em arte, música e literatura. Sempre fiquei satisfeito com o atendimento: eles orientam quando você pede, não ficam em cima. É um pessoal bacana (gente joven y copada, como se diz aqui).

Adoro a seção infantil. Dá vontade de comprar tudo. Para quem é fumante, boa notícia: a livraria dedica uma parte hermética do bar para a esquadrilha da fumaça. O banheiro fica em cima (ponto negativo). Os sucos são bons, o que é raro em Buenos Aires. O gerente do café é simpático e os preços são justos - ao contrário do café da famosa livraria El Ateneo.

Se você vai ficar alguns dias na cidade, é bom dar uma olhada na agenda da livraria. Sempre tem uma exposição de arte ou lançamento que vale à pena.

Libros del Pasaje (Thames, 1762, Palermo Soho, entre El Salvador e Costa Rica).
De 2ª a 5ª de 10h às 22h, 6ª de 10h às 23h, sábado de 11h às 23h e domingo e feriados de 14h às 22h.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Argentina dá exemplo com o casamento gay

Não adiantou o Monsenhor Bergoglio ter dito que "o demônio" estava por trás dessa iniciativa. O Senado argentino a aprovou por 33 votos a favor, 27 contra e 3 abstenções. Assim, a Argentina se tornou o primeiro país da América Latina a legalizar a boda de homossexuais. Eu me sinto orgulhoso: finalmente uma boa notícia daqui dos pampas.

Ontem, vendo o debate dos senadores madrugada afora, vi que a desinformação a respeito do assunto é grande mesmo entre os ilustres parlamentares. Muitos usam a expressão "escolha sexual", como se o sujeito "decidisse" ser gay às 4 da tarde de uma terça-feira. Hoje há evidências suficientes para afirmar que a orientação sexual tem um componente biológico. Tanto que a proporção de gays gira em torno de 2% a 5% no mundo todo, sem importar a cultura, a religião ou a opressão de países como o Irã e a Arábia Saudita.

Bergoglio e companhia queriam que a proposta do casamento gay fosse levada a plebiscito. É que eles sabem que a maioria da população rejeita a iniciativa. Mas os direitos fundamentais não são plebiscitáveis. A democracia é feita pela maioria, mas é posta à prova ao garantir os direitos das minorias. É disso que tratam os direitos humanos. Durante o nazismo, a maioria da população alemã apoiou as Leis de Nuremberg, que proibiam os judeus de ter relações sexuais com não-judeus e vice-versa. A maioria também não se importou com a matança deles e dos gays, ciganos e outros "indesejáveis". Sim, meu caro Bergoglio, a democracia deve proteger os direitos das minorias.

Bergoglio e companhia também acreditam que é possível “curar” gays. Mas ser gay não é doença, meu caro Monsenhor. É uma variação absolutamente natural do comportamento humano - e animal, diga-se.

Muitos opositores da lei aqui na Argentina têm medo de que filhos adotados por casais gays serão gays também. Minha gente, ser gay não é contagioso. Garanto que os gays que vocês conhecem são filhos de casais heteros. Além disso, o número de gays não é maior entre filhos criados por casais de homossexuais.

Abaixo eu listo algumas descobertas recentes sobre as origens da homossexualidade. Sei que muita gente vai ler tudo e concluir: “Ok, mas não acho que seja assim” (nossas opiniões sobre alguns assuntos são mesmo sedimentadas, não?). Mas se alguém estiver disposto a sair das trevas do Monsenhor Bergoglio, eu recomendo ler também uma matéria que fiz em 2006 e o livro “Born Gay”, de Qazi Rahman.


A resposta biológica

Em 1991, o neurocientista anglo-americano Simon LeVay, gay declarado, anunciou ter encontrado diferenças em cérebros de homens gays e héteros. LeVay examinou o hipotálamo, zona-chave da sexualidade no cérebro, e descobriu que a região chamada INAH-3 era entre 2 e 3 vezes menor nos gays. "Minhas pesquisas sugerem que algo acontece muito cedo na vida dessas pessoas, provavelmente na vida pré-natal", diz ele.

A pista genética

Veio em 1993 com Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer, nos EUA. Hamer percebeu que dentro das famílias havia muito mais gays do lado materno. A descoberta atraiu sua atenção para o cromossomo X (mulheres têm dois cromossomos X, enquanto os homens têm um X e um Y). Em seguida, a descoberta: usando um escâner, Hamer viu que uma região do cromossomo X, a Xq28, era idêntica em muitos irmãos gays. O que ele descobriu não foi propriamente um único gene gay, mas uma tira de DNA transmitida por inteiro. A notícia provocou rebuliço, e não era para menos. Mesmo contestada por outros estudos, a conexão entre genes e orientação sexual sugere que as pessoas não escolhem ser homossexuais, mas nascem assim.

Pesquisas com gêmeos

Os pesquisadores americanos Michael Bailey, da Universidade Northwestern, e Richard Pillard, da Universidade de Boston, analisaram gêmeos e viram que, entre bivitelinos, se um deles é gay, o outro tem 22% de possibilidade de também ser. Para os univitelinos, a probabilidade sobe para 52%.

São números bastante superiores à taxa de homossexualidade entre a população (entre 2% e 5%). Bailey e Pillard, portanto, praticamente provam a existência de um componente genético para a homossexualidade. Ao mesmo tempo, praticamente provam, também, que os genes não dão conta de tudo. "Os estudos com gêmeos feitos até agora nos permitem uma estimativa de que até 40% da orientação sexual venha dos genes", diz o pesquisador Alan Sanders, da Universidade Northwestern, EUA.

Hormônios sexuais durante a gravidez

Se os genes não explicam tudo, que outros elementos explicariam? Um deles parece ser o desenvolvimento biológico do feto ainda no útero. E é dessa área que vêm saindo as pesquisas mais promissoras. Uma delas é a teoria dos hormônios pré-natais. A idéia é que os hormônios sexuais masculinos (andrógenos) se conectam às partes responsáveis pelos desejos sexuais no cérebro e influenciam seu crescimento, tornando o cérebro mais tipicamente masculino ou feminino. A conexão dependeria das proteínas receptoras de andrógenos (AR, na sigla em inglês).

Imagine que cada célula do cérebro seja uma casa. As ARs funcionariam como o portão dessas casas, que controla a entrada de pessoas. Sabe-se que a quantidade e a localização desses portões são diferente nos homens e nas mulheres. Cientistas já constataram, por exemplo, que o hipotálamo masculino tem mais ARs que o feminino. Essa teoria supõe que a homossexualidade nos homens é causada por "portões" que restringem a entrada de andrógenos nas regiões responsáveis pela sexualidade, formando um cérebro submasculinizado. Nas mulheres, esses portões facilitariam entradas maiores, construindo uma estrutura supermasculinizada. Tudo conseqüência do número de ARs de cada feto - o que talvez se deva à carga genética.

Vale lembrar que os hormônios importantes não são os que circulam no nosso sangue quando adultos - cujos níveis são iguais em homossexuais e héteros - mas os que atuaram no período de gestação.

O efeito dos irmãos mais velhos

O novo desafio dos pesquisadores é entender quais as origens de um fenômeno recém-descoberto: a existência de irmãos mais velhos parece afetar a sexualidade dos mais novos. É o chamado "efeito big brother". O cientista canadense Ray Blanchard acompanhou 7 mil pessoas e viu que a maioria dos gays nasce depois de irmãos homens e heterossexuais. Blanchard e o colega Anthony Bogaert calcularam que cada irmão mais velho aumenta em 33% a possibilidade de o menor ser gay. Um garoto com 3 irmãos mais velhos tem o dobro de possibilidade de ser gay que outro sem irmão mais velho. Um garoto com 4 irmãos mais velhos tem o triplo. Ter irmãs mais velhas não altera a probabilidade de o menino ser gay.

Para alguns, a explicação está na convivência familiar: depois de dar à luz vários homens, a mãe trataria o caçula como a menina que ela não teve. Os irmãos mais velhos também tenderiam a "dominar" o mais novo, influindo em seus sentimentos sobre si e os demais. Outra hipótese vem da biologia. "Os fetos masculinos talvez acionem uma reação imunológica na mãe ao produzirem substâncias que ameaçam seu equilíbrio hormonal", diz o cientista Qazi Rahman, da Universidade de East London. Segundo ele, o corpo da mãe acionaria um alarme para produção de anticorpos contra proteínas ou hormônios do bebê. Cada novo feto masculino intensifica a resposta, e o acúmulo de anticorpos redirecionaria a diferenciação tipicamente masculina para uma mais feminina, gerando orientação homossexual nos filhos seguintes.

A influência do ambiente

Como os outros pesquisadores, Rahman não nega que fatores ambientais possam entrar na equação. O problema é que ninguém sabe exatamente quais são eles. Não há provas, por exemplo, de que o abuso sexual na infância causa homossexualidade. O número de gays não é maior em lares chefiados por mulheres nem entre filhos criados por casais gays. Tampouco há mais casos de homossexualidade após períodos de guerra, quando os pais se ausentam de casa, o que enfraquece as hipóteses sobre dinâmicas familiares.

Sigmund Freud dizia que mães superprotetoras e pais ausentes poderiam levar o filho a ser gay. Mas Rahman tem uma opinião distinta: ao invés de encontrar a causa, Freud possivelmente enxergou a conseqüência. A superproteção da mãe não seria a origem da homossexualidade, mas um ato de defesa para um filho que é rejeitado pelo pai por se comportar, desde cedo, de maneira feminina.

Fatores biológicos + psicológicos + sociais

Embora a ciência esteja caminhando para a noção de que a homossexualidade é inata, a biologia não é completamente determinante. "Essa predisposição para a homossexualidade vai se manifestar ou não dependendo das experiências de vida da pessoa", diz a psiquiatra Carmita Abdo. Tudo indica que a homossexualidade é mesmo o resultado da interação de 3 fatores: biológicos, psicológicos e sociais, mesmo que esses dois últimos ainda precisem de mais evidências.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Por que sonhamos?


(Marc Chagall, Circo)

Essa pergunta tirava meu sono até que conversei com dois grandes especialistas no assunto: o cientista brasileiro Sidarta Ribeiro e o psiquiatra americano Allan Hobson. Reproduzo as entrevistas abaixo. Você vai ver que as abordagens deles são diferentes: Sidarta dialoga com a psicanálise, principalmente com a noção freudiana de que os sonhos são "restos do dia". De fato, os neurônios mais ativados durante o dia também são durante a noite.

Hobson, por outro lado, diz que os sonhos não têm nada de inconsciente. Ao contrário: são um processo mental consciente, aliás, hiperconsciente! Apenas não nos lembramos deles. Mas o psiquiatra afirma que o significado dos sonhos não importa tanto. Eles funcionam mais como um treino para o cérebro, uma espécie de pilates dos neurônios que nos prepara para o dia seguinte. É nesse ponto que os dois estudiosos coincidem: os sonhos simulam comportamentos, e assim nos ajudam a encarar a vida.

Minha conclusão: não dá para entender por que sonhamos levando em conta apenas a teoria psicanalítica. É preciso compreender como o cérebro funciona, algo que os cientistas de hoje sabem muito mais do que Freud sonhava em saber em sua época. Do mesmo jeito, a biologia sozinha não dá a resposta.

Eis a primeira matéria, que saiu no especial 30 Maiores Mistérios da Ciência, em novembro de 2009.

Por que sonhamos?

Das velhas teorias psicanalíticas à moderna neurociência, o que a ciência sabe sobre esse curioso fenômeno?

Em 1900, o austríaco Sigmund Freud causou uma revolução no estudo da mente ao publicar A Interpretação dos Sonhos. Nele, o pai da psicanálise contestava a noção bíblica de que os sonhos eram fenômenos sobrenaturais, dizendo que derivavam da psique humana. Decifrá-los, portanto, seria a chave para entender o que se passa dentro da nossa cachola. Essas teorias foram ridicularizadas por muito tempo e somente agora, mais de 100 anos depois, elas estão sendo testadas. 



A primeira idéia de Freud confirmada pela ciência é a de que os sonhos seriam restos do dia. Ou seja: algo que acontece com você de dia reverbera durante os sonhos. A comprovação científica disso foi feita em 1989 por Constantine Pavlides e Jonathan Winson na Universidade Rockefeller. Ao observar cérebros de ratos, eles descobriram que os neurônios mais ativados durante o dia continuavam a ser ativados durante a noite. Do mesmo modo, os neurônios pouco ativados durante o dia tampouco eram durante a noite. O que isso significa?

“Significa, por exemplo, que, se uma pessoa teve hoje uma experiência marcante, a chance de essa experiência entrar em seu sonho é muito grande”, diz Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN–ELS). “Se ela foi atacada por um tubarão, é provável que sonhe com tubarão. Se foi para a guerra do Iraque, nos próximos anos vai sonhar com guerra. Isso é o resto diurno levado às últimas conseqüências.” Mas, como em nossa vida moderna ninguém tem experiências extremas todos os dias, os sonhos acabariam sendo uma mistura simbólica de um monte de coisas, como Frued havia previsto. Você pode sonhar hoje com tubarão, a manhã com jacaré, depois com afogamento, simbolizando todos eles uma mesma experiência.

Mas de onde viriam aqueles sonhos malucos, com cenas que você nunca viu? Para a ciência, do seu inconsciente. É lá que estão guardadas as lembranças que você adquiriu ao longo da vida. Quando você dorme e começa a sonhar, seu sono entra na fase REM (sigla em inglês para Movimento Rápido dos Olhos). “O sono REM faz ovos mexidos com suas memórias. Ele as concatena de uma forma não comum”, diz Sidarta. Isso acontece porque o cérebro está em altíssima atividade nessa fase, mas não tem as informações sensoriais da vigília. Não conta com cheiros, imagens, sons nem outras informações que temos quando estamos acordados. A atividade sensorial está livre e vai aonde quiser, seguindo os caminhos mais usados – que são as memórias mais fortes. Ou seja: seus sonhos com imagens aparentemente inéditas seriam apenas combinações de uma série de símbolos que você já conhece de outras experiências.

Ok, mas sonhar serve para o quê? “Tudo indica que o sonho tem a função de simular comportamentos – tanto os que levam a recompensa (os bons) como os que levam a punição (os pesadelos)”, diz Sidarta Ribeiro. “Portanto, sua função seria evitar ações que resultem em punição e procurar aquelas que levam à satisfação do desejo.” Esse processo funcionaria da seguinte forma. Imagine uma cotia. Seu pesadelo é que a jaguatirica apareça quando ela estiver bebendo água. Assim, da próxima vez que for ao lago, essa memória voltará e ela terá mais cuidado (evitando a punição). E o sonho bom da cotia? É encontrar um campo com sementes gostosas. Portanto, se ontem ela passou num lugar que tinha sementes, seu sonho será ela voltando àquele lugar, pois talvez haja mais alimento a li amanhã (levando à recompensa). Essa tese combina, de certa forma, com a idéia freudiana de que a função dos sonhos é a satisfação do desejo.

Agora, a explicação de Allan Hobson (na foto abaixo, publicada na Super na edição de dez/2009). E, de quebra: por que não conseguimos lembrar dos sonhos...

Exercícios para o cérebro

Você não precisa se descabelar para interpretar seus sonhos, nem sofrer se não consegue se lembrar deles. Segundo o psiquiatra americano Allan Hobson, da Universidade de Harvard, a principal função dos sonhos é fisiológica: eles são exercícios para o cérebro. Agem como programas que rodam em nossa cachola para mantê-la atualizada, e assim nos preparam para despertar. Surpresa: não tem nada de inconsciente nisso.

Por que sonhamos?

Porque o cérebro é ativado enquanto dormimos. Até o século 20, pensava-se que o cérebro desligava durante o sono. Hoje sabemos que ele nunca desliga totalmente e que se ativa de novo durante a fase REM [Movimento Rápido dos Olhos, quando acontecem os sonhos mais intensos]. Essa ativação é interna: como praticamente não entram estímulos do ambiente, o cérebro faz tudo por si só. As imagens dentro dele são tão vívidas que ele pensa que está acordado. E só porque temos dificuldade de nos lembrar delas é que achamos que sonhar é um estado inconsciente – como dizia Freud.

E não é?

De forma alguma. É um processo mental consciente, que ocorre durante o sono, e que simplesmente não é lembrado. Sonhar é hiperconsciente: os surrealistas diziam que seus sonhos eram mais intensos do que estar acordado.

Por que é tão difícil lembrar dos sonhos?

Porque a química do processo de ativação cerebral também muda durante o sono. Durante a vigília, são secretados altos níveis de substâncias chamadas neuromoduladores [que influenciam as conexões do sistema nervoso]. Porém, quando o cérebro se ativa no sono REM, três delas são “desligadas”: serotonina, norepinefrina e histamina. E como nossa memória é altamente dependente delas, a maior parte dos sonhos não é registrada. Para se lembrar, você precisa acordar e “ligar” essas substâncias de novo.

Quer dizer que o sonho é um estado de consciência paralelo?

Exato. Eu faço a distinção entre a consciência do sonho (primária) e a consciência na vigília (secundária). Quando despertos, nós somos conscientes do mundo exterior e de nos mesmos. Temos memória, organizamos pensamentos e controlamos percepções e emoções. Ao sonhar também somos conscientes: temos percepções e emoções, embora não reconhecemos que tudo não passa de um simulacro, às vezes bem bizarro. O importante é que a consciência do sonho nos prepara para a consciência na vigília.

De que forma?

Os sonhos reprogramam o cérebro e atualizam nossa capacidade de nos mover, pensar, sentir. São como exercícios do cérebro, que você pratica pelo menos 1 hora e meia por noite. Eles ligam atividades sensoriais e emoções, antecipando a vigília. Apenas a memória não é ligada.

Então não importa se a pessoa não se lembra do sonho?

Do ponto de vista psicológico, lembrar do sonho pode até ajudar você a entender algo. Mas do ponto de vista do cérebro, não é importante. Conheço muita gente competente que nunca se lembrou de nenhum sonho. É como numa caminhada: você não se lembra de cada passo que deu, mas o corpo sabe que se exercitou.

Muitos autores dizem que a experiência determina os sonhos. Quem está na guerra, por exemplo, provavelmente sonha com guerra.

Sem dúvida as experiências têm algo a ver com o sonho. Mas você se conhece e sabe que isso não é tudo, certo? Há sonhos de todo tipo: felizes, tristes, ansiosos, sexuais... E até onde sabemos, só uma pequena parte é determinada pela experiência. Muitos são determinados por seu cérebro. Ele não sabe se você será atacado ou seduzido amanhã, por exemplo, e por isso precisa se preparar para tudo. Então, ele roda todos os programas quando você dorme. Mesmo numa guerra, a pessoa ainda pode sonhar com coisas que aconteceram 20 anos antes ou que nunca aconteceram. Portanto, não é que as experiências sejam irrelevantes, e sim que muitas delas são antecipadas e guiadas enquanto dormimos.

O Sr. diz que os sonhos ajudam em nosso desenvolvimento. Por quê?

O sono REM ocorre já no último trimestre da gravidez. Ou seja: antes mesmo de você nascer, seu cérebro é ativado e um tipo consciência primária acontece. E o objetivo desse estado de consciência primordial, que foi esquecido, é ativar o cérebro de uma forma muito parecida como será ativado na vigília. No primeiro ano de vida, você passa várias horas por dia com essa ativação cerebral. Ela organiza seus neurônios, estabelece as conexões, enfim, faz todo o necessário para que você possa ir à escola depois.

O Sr. tem algum sonho recorrente?

Estou andando de bicicleta em Londres e tenho na garupa uma tesoura de poda de árvore. O que estou fazendo ali? Por que isso está acontecendo? Será que devo fazer uma interpretação simbólica desse sonho? Ou pensar: eu não ando mais de bicicleta, mas meu cérebro ainda sabe fazer isso. Meu cérebro supõe que seja em Londres – olhando para os ônibus de 2 andares – e tudo isso é parte de minha consciência antecipatória. Por que levo uma podadeira? Freud diria que tem a ver com castração ou ansiedade. Mas provavelmente a podadeira é uma lembrança que está no meu cérebro e que emerge numa combinação aleatória por motivos que não entendemos completamente.

Se os sonhos não são psicológicos...

Não digo isso. Digo que agora conhecemos a base fisiológica dos sonhos, o que não significa que eles não tenham significado psicológico. É tentador para muitos jornalistas escrever que minha teoria é anti-freudiana. Mas o ponto é: muito do que sabemos agora sobre o funcionamento do cérebro Freud não tinha como saber em sua época, apesar de ter sido brilhante. Assim, muitas hipóteses psicológicas sobre os sonhos são restringidas pelo que sabemos hoje.

Quais os grandes mistérios que ainda restam sobre os sonhos?

Um deles é como eles são usados pelo cérebro em desenvolvimento para criar um cérebro maduro. É muito difícil fazer experimentos sobre isso. Antes, todos pensavam que os sonhos tinham de ser interpretados. Eu penso que eles têm de ser descritos. Por exemplo, há alguma lógica neles? Que tipo de lógica? Há muito a descobrir sobre a forma dos sonhos, que foi ignorada até agora para dar lugar a interpretações sobre o conteúdo.