segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De volta à zona de combate

Casal presidencial: qual será o conflito desta semana?

Durante um tempo eu sonhei em ser correspondente de guerra. Queria ir às áreas de conflito e contar as histórias de quem enfrenta essa realidade. Hoje não preciso de guerra: a Argentina vive um conflito atrás do outro.

Não são conflitos armados como os do Oriente Médio, nem semi-guerrilhas urbanas como a do Rio de Janeiro. Na Argentina atual, a disputa é pelo poder político. E para os Kirchner, tudo é política – a soja, a carne, a imprensa e até o futebol.

Assim, voltar para Buenos Aires após 10 dias em Belo Horizonte foi como sair da zona de paz e retornar ao campo de batalha. O governo está em pé de guerra contra os produtores rurais, a imprensa, os industriais e parte da Justiça, para citar alguns.

Sua mais recente ofensiva foi contra a empresa de internet Fibertel, do arquiinimigo (e ex-aliado) Grupo Clarín, principal conglomerado de comunicação do país. O governo tentou revogar a licença da companhia, numa manobra a la Chávez, mas foi freado pela Justiça. Ainda bem: eu e mais 1 milhão de clientes dependemos dos serviços da Fibertel!

Agora o governo está determinado a acabar com o domínio acionário dos diários Clarín e La Nación sobre a empresa Papel Prensa, que fornece a matéria-prima para a maioria dos jornais do país. O discurso oficial é que Clarín e La Nación se apoderaram ilegalmente da empresa na época da ditadura. É engraçado que só agora, 27 anos depois, Nestor e Cristina tenham trazido essa história à tona. Durante todo esse tempo eles não deram ouvido aos donos dos jornais menores, que sempre reclamaram por ter ficado de fora do bolo.

O problema é que o casal presidencial se tornou especialista em gerar conflitos. Cada discurso é para desqualificar jornalistas, opositores ou empresários que não integram o clube de amigos do poder. Em vez de buscar o interesse comum, o governo age como um setor a mais da sociedade, ou seja, motivado por interesses próprios.

Assim, o noticiário vai a reboque de cada novo conflito. A população pensa que os embates do governo são os embates que importam à Argentina. E o país vai deixando o trem passar...

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A ciência é (quase) cega - e nós também

Hoje quero falar de ciência, mas não só dela. Vamos começar com uma pergunta simples. Qual dos desenhos abaixo melhor reproduz a forma da órbita da Terra ao redor do Sol?

Private Universe

Moleza, não? Na minha escola me ensinaram que a órbita da Terra é bem elíptica, e acredito que na sua você também aprendeu isso. Então já podemos eliminar as opções A e B. Lembro de um trabalho que minha professora de ciências passou para a turma: tínhamos que comprar bolas de isopor de tamanhos diferentes para representar os planetas, e cada um deles possuía órbita bem achatada. O Sol ficava no centro do Sistema Solar, o que me remete à figura C. Mas e as estações do ano? Não é que a Terra está mais perto do Sol no verão e mais longe no inverno? Ora, então deve ser a figura D.

Nada disso: a opção mais correta é a letra A. Ao contrário do que a gente aprendeu, a órbita da Terra não é tão achatada. Aliás, é quase um círculo perfeito. A Terra permanece a uma média de 150 milhões de km do Sol durante o ano, com pequenas variações. E o que causa as estações não é a distância entre a Terra e o Sol, mas a inclinação do eixo da Terra (23,5 graus).

Verdade: o ângulo com que os raios solares incidem na Terra afeta a temperatura. Durante o verão, o Sol está alto no céu e o ângulo dos raios solares é quase perpendicular à superfície do planeta, deixando a energia mais concentrada. Por outro lado, quando o Sol está mais baixo no céu, os raios incidem num ângulo mais agudo e se dispersam na superfície. Cada pedacinho de terra recebe menos calor e assim estou eu agora batendo queixo no inverno (veja desenho abaixo). O tempo também é mais quente no verão porque o Sol, ao estar mais alto, fornece mais horas de luz por dia.

Private Universe

Não foi só a minha escola que ensinou errado. No famoso documentário Private Universe, de 1988, a pergunta "por que é mais quente no verão que no inverno?" foi feita a 23 professores e alunos de física da Universidade de Harvard. Com exceção de 2, todos eles responderam que é porque a Terra está mais próxima do Sol no verão. Uma explicação que continua firme e forte até hoje.

Usei esse exemplo para mostrar que carregamos uma porção de ideias erradas sobre muitas coisas, inclusive as que parecem banais como as estações do ano. Uma vez que elas se instalam no nosso cérebro, é muito difícil mudá-las. Como diz o personagem de Leonardo DiCaprio no filme "Inception", essas ideias são mais resilientes que vírus e bactérias. Não vão embora, mesmo quando confrontadas com fatos como esses aí de cima.

Se duvida de tudo o que eu disse, não se afobe. Você não é o único.

Meu erro

Semanas atrás, eu tentei explicar a causa das estações do ano a um engenheiro amigo meu, mas não adiantou. A primeira reação dele foi: quem te disse isso? Por mais que eu insistisse, ele continuava duvidando da "minha tese". Até aceitou que o ângulo da Terra era importante, mas incorporou-o à sua velha crença na distância: para ele, quando um hemisfério está mais perto do Sol é verão, quando está mais longe é inverno.

Bobagem: como explica o projeto Private Universe, a Terra é tão pequena e distante em relação ao Sol que a diferença da distância entre os hemisférios é praticamente desprezível. O planeta está inclusive um pouquinho mais perto do Sol quando é inverno no Hemisfério norte. (Se quiser mais detalhes, visite o site do projeto. Se for professor, vale a pena discuti-lo com seus alunos.)

Portanto, meu erro foi tentar convencer meu amigo dessa nova ideia, indo contra tudo o que ele ouvira desde pequeno inclusive na faculdade de Engenharia. (Será mesmo que agi errado?) Meu amigo então ligou para um físico que conhece. O físico também contestou "minha tese" e repetiu a velha fórmula que aprendera nos livros didáticos: a causa das estações do ano é a distância entre a Terra e o o Sol. Me dei por vencido. Assim como o engenheiro, o físico também não arredava o pé dessa ideia.

O cientista que estuda cientistas

Esse é o ponto aonde eu queria chegar. Os cientistas vivem rejeitando fatos que não se encaixam na tese deles. (Eu disse cientistas, não religiosos ou jornalistas!) Quanto mais comprometidos com a tese, mais chances eles têm de ignorar dados inconsistentes que aparecem nos experimentos. Foi o que o neurocientista Kevin Dunbar constatou ao acompanhar 4 laboratórios de biologia molecular da Universidade de Stanford, o supra-sumo da ciência mundial.

A Superinteressante deste mês traz a entrevista que fiz com o Dunbar, que é professor de psicologia na Universidade de Toronto, no Canadá. Há décadas ele estuda como os cientistas raciocinam na hora de conduzir os experimentos. A conclusão: a maioria ignora achados não previstos na tese inicial, pensando que são erros. E acabam selecionando os dados que confirmam o que eles já acreditavam. (Desde que falei com Dunbar, fico com o pé atrás quando alguém me fala de algo "cientificamente provado"...)

Superinteressante

Em grande parte do tempo no laboratório, diz Dunbar, os cientistas obtêm resultados que não esperavam. Pelo menos 50% dos dados são inconsistentes com sua teoria. Eles encontram uma proteína que “não deveria” estar lá, por exemplo. Sua reação inicial é culpar o método: acham que o dado está errado e que vai desaparecer se mudarem algum detalhe do experimento, como a temperatura. Se o resultado se repete várias vezes, começam a pensar que algo interessante está ocorrendo. No entanto, só uma minoria segue resultados inesperados – que podem levar a uma descoberta.

Essa decisão depende do grau de comprometimento com a teoria. Cientistas altamente comprometidos tendem a ignorar mais dados inconsistentes com ela. Pode ser que nem vejam uma informação que não esperam, o que é um desastre para a ciência. De acordo com Dunbar, a explicação está no cérebro. Há informações demais à nossa volta, e o cérebro precisa filtrá-las. Nesse processo, dados “estranhos” nem serão memorizados. Essa é uma das funções de uma região cerebral chamada córtex pré-frontal dorsolateral: suprimir representações indesejadas.

Para evitar que esses lapsos aconteçam, Dunbar diz que o caminho é tentar mudar as nossas representações. Pensar no problema de outro modo. Veja o caso do Viagra: ele foi inicialmente desenvolvido para problemas do coração. No final dos testes, a droga não melhorou a condição cardíaca dos voluntários, mas eles não quiseram devolvê-la. Por que gostaram tanto? Esse foi um caso de descoberta acidental: os cientistas primeiro acharam que o experimento tinha falhado. Daí prestaram atenção no resultado inesperado – e hoje o Viagra é usado para combater a impotência sexual.

Ok, optar por seguir um dado inconsistente é fácil. Mas o que fazer quando aparecem 50 na frente do cientista?

“Luis Pasteur dizia que a sorte favorece a mente bem preparada”, diz Dunbar. Ou seja: o bom cientista sabe que tipo de dados seguir. Ele dirá: “Hum, isso é interessante, vamos por aqui”. Outros cientistas não mudarão de rumo. Experimentos custam tempo e dinheiro, e eles não vão se arriscar em nome de algo que não conhecem. “Em geral, cientistas precisam decidir entre fazer os experimentos de baixo risco, que garantem emprego e publicações, e os de alto risco, que provavelmente não vão funcionar mas que podem render descobertas”, afirma.

Portanto, segundo Dunbar o sistema científico é parte do problema, pois faz com que os cientistas só se preocupem em publicar. O que importa é o número de publicações. Assim, o que 90% dos cientistas fazem é apenas mudar uma variável de um velho experimento e publicá-lo de novo. Vão mudando detalhes, sem fazer descobertas que realmente contribuam para o conhecimento.

Isaac Newton

Pensamos que o trabalho do cientista é solitário e que a descoberta vem de repente – tal como Isaac Newton descobrindo a gravidade ao ver a maçã cair da árvore. Mas na ciência o raciocínio é feito em conjunto, e a diversidade do grupo é crucial para lidar com dados inesperados. Por isso, Dunbar diz que os encontros informais entre cientistas são fundamentais. É nessas horas que a interação e o raciocínio espontâneo ocorrem livremente. E podem ajudar a pessoa a mudar de ideia sobre um resultado.

"Se o grupo é homogêneo, ter 10 pessoas não é melhor que ter uma, porque todas elas têm a mesma ideia. Não adianta elas terem lido os mesmos livros ou estudado na mesma faculdade. Além disso, é bom ter homens e mulheres na equipe, já que eles não costumam seguir dados inesperados tanto quanto elas", afirma.

Para quem quiser ler os trabalhos do Dunbar, vale uma visita ao laboratório dele. Minha sugestão é o estudo "Do Naïve Theories Ever Go Away?".