quarta-feira, 23 de junho de 2010

Essa não desceu redondo

Argentino residente em BH deu um basta na chacota. A campanha da cerveja começou com humor, mas vinha pisando na bola.

Algumas propagandas da Skol são muito bem-humoradas, é verdade. Aquela em que o argentino confunde o grito de “Skol!” com “gol!” me parece inofensiva. Futebol tem mesmo dessas brincadeiras e muitos argentinos aqui não se sentiram ofendidos ao vê-las no YouTube. Até riram delas. Mas a coisa vinha passando do limite.

E veio a boa notícia: o Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF/MG) recomendou à Companhia de Bebidas das Américas (Ambev), detentora da Skol, que faça cessar de imediato campanha em que um argentino é chamado de maricón (“gay, covarde”) por uma latinha de cerveja que acaba de ser aberta.

A recomendação veio graças a uma representação feita por um cidadão argentino que reside em Belo Horizonte, para quem campanha é ofensiva e discriminatória.

O procurador Edmundo Antônio Dias Neto, autor da recomendação, considerou que a campanha tem um caráter duplamente discriminatório. “Em primeiro plano, há um preconceito contra os argentinos e, subliminarmente, há um caráter homofóbico”, disse Dias Neto em declarações à imprensa. Segundo ele, é inconcebível que a Ambev não tenha sido capaz de criar uma propaganda que exalte o nacionalismo brasileiro sem apelar para o preconceito. Quem criou a campanha das latinhas falantes foi a agência F/Nazca.

Concordo: enquanto as latinhas gritam "pentacampeão" para o argentino, a provocação está no terreno do humor, da gozação. Do mesmo jeito que algumas propagandas aqui na Argentina tiram onda do sotaque brasileiro. Mas a partir do momento em que a latinha grita maricón, não ofende só os argentinos, mas principalmente os gays. Ela usa o preconceito contra uns para diminuir os outros. Aí pisa na bola.

Vamos aprender sobre a lei

Vale recordar: a Constituição brasileira, em seu artigo 5º, garante aos estrangeiros residentes no país igualdade perante a lei e respeito aos seus direitos, sem distinção de qualquer natureza. Segundo o procurador, a propaganda também viola o Código de Defesa do Consumidor (que veda o tratamento discriminatório) e o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, cujo artigo 20 afirma que “nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade".

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Lembranças agridoces de Saramago


Conheci José Saramago no Rio de Janeiro, em 1999, durante a Bienal do Livro. Eu era repórter do saudoso caderno "Espetáculo", do Estado de Minas, e ele acabava de ganhar o Nobel de Literatura - o único até hoje conferido a um autor de língua portuguesa. Foi uma entrevista exclusiva, mas nenhum de nós curtiu muito. Ele estava tenso com o assédio dos jornalistas e só topou sentar diante de meu gravador porque tinha um evento programado em Belo Horizonte na semana seguinte.

Nos encontramos numa sala do hotel onde ele se hospedava. Saramago chegou, me cumprimentou com cara fechada, sentou na poltrona e lançou um olhar do tipo "faça aí a pergunta, vamos acabar logo com isso." Como ele havia citado Belo Horizonte e Tiradentes no livro "Cadernos de Lanzarote II", perguntei se sentia alguma identificação por essas cidades. Quem sabe assim quebrava o gelo. "Não há uma identificação, há um conhecimento”, respondeu o escritor, lembrando que já estivera em BH, Mariana, Ouro Preto, Congonhas e Tiradentes. E que gostava muito de Minas Gerais.

Saramago foi viver em Lanzarote, nas ilhas Canárias, depois que o livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) estremeceu de vez sua relação com a Igreja Católica. Me disse que não desejava voltar a morar em Portugal, embora considerasse que ainda vivia por lá. Também não guardava rancores da Igreja: “Disseram que eu era um velho comunista, mas isso não me desagradou. Pior seria se dissessem que eu era um comunista velho.”

Fui direto ao ponto.

Pergunta: O senhor tem falado muito dos problemas que o Nobel lhe trouxe, como a própria pausa no livro. Afinal, o Nobel vale à pena ou o senhor continua acreditando que ele é notório apenas pelo lado material (quase um milhão de dólares)?

Saramago: Eu disse algumas vezes que, no fundo, o que causava toda essa agitação tinha muito a ver com o próprio valor material do Nobel. Mas também é certo – e agora tenho a experiência – que o Nobel tem um certo valor mítico. No plano cultural, suponho que é o único acontecimento que reúne todo mundo diante do rádio e da TV. O Nobel confere à pessoa uma maior visibilidade no mundo. Recebê-lo faz aumentar não só a responsabilidade intelectual, mas também moral. Levar o Nobel nas costas é de fato muito agradável do ponto de vista material, mas envolve uma responsabilidade muito grande, que não se resolve por uma questão de prudência no que se diz ou faz. O que digo chega mais longe. As pessoas querem saber o que penso. Não passei a ter autoridade sobre tudo que há no mundo, mas as pessoas esperam uma opinião, um parecer, e não se pode fugir a isso.

Cegueira intelectual

Eu admiro muito alguns livros de Saramago. “Ensaio sobre a Cegueira” e “O Evangelho...” me parecem sublimes. Fiquei entediado com os “Diários”, mas ele sem dúvida foi um dos maiores artesãos da palavra, um dos grandes estilistas da língua portuguesa. No entanto, não posso dizer o mesmo sobre declarações que o escritor fazia. Para satisfazer a “responsabilidade moral”, creio que ele cometeu graves disparates.

Um deles foi comparar os territórios palestinos com Auschwitz. Pra começo de conversa, os nazistas implementaram uma política sistemática de extermínio. Juntos, os 5 crematórios de Auschwitz podiam queimar 4675 corpos por dia. Era a morte em escala industrial. Nada menos que 1,5 milhão de judeus, homossexuais, ciganos e outras minorias morreram nesse campo, a maioria em câmaras de gás. Dois terços da população judaica da Europa foram eliminados pelo regime nazista, que só parou a matança porque sucumbiu ante os aliados.

É preciso muita cegueira intelectual pra comparar isso com a Cisjordânia – onde a população palestina, aliás, cresceu acima de 3% ao ano entre 1997 e 2007, segundo a UNRWA. Para se ter uma ideia, a taxa anual do Brasil é inferior a 2%. Em Gaza, o crescimento populacional foi ainda maior: 4,5% ao ano, um dos mais altos do mundo.

Cegueira ideológica

Saramago não foi o único escritor cegado pela ideologia. O filósofo francês Jean-Paul Sartre não teve problema em adotar uma postura ambígua diante do terror soviético e dos horrores perpetrados nos campos do Gulag. “Como não éramos membros do Partido”, escreveu Sartre, “não tínhamos o dever de escrever sobre os campos de trabalho forçado soviéticos.” Em carta ao escritor Albert Camus, Sartre disse: “Como você, acho esses campos intoleráveis. Mas acho igualmente intolerável o uso que a imprensa burguesa faz deles.”

É verdade que Saramago levantou a voz contra a ditadura de Fidel Castro e defendeu os direitos dos dissidentes cubanos. Quando falava do Oriente Médio, porém, sua visão se tornava seletiva. Ele disparou de forma reiterada contra Israel, sem nunca mencionar os abusos que os palestinos sofrem nas mãos de seus próprios líderes. Ele se calou ante as matanças mútuas promovidas por militantes do Fatah e do Hamas. Ele se calou ante a opressão feminina nos territórios, do mesmo jeito que se calou ante as perseguições que escritores e jornalistas palestinos sofrem se ousam criticar seus governantes.

Em nenhum momento ele reconheceu que os escritores israelenses – como Amos Oz e Abraham Yehoshua – têm plena liberdade para denunciar a intransigência dos religiosos de Israel. Sem ter que ir viver numa ilha por causa disso.

Cegueira voluntária

Em seu último romance, "Caim", Saramago faz o mesmo que os fundamentalistas religiosos que ele tanto criticou: uma interpretação literal do Antigo Testamento. Relata as ações do Deus "sanguinário e caprichoso" dos judeus para concluir que a Bíblia é um "manual de maus costumes". Puxa, terá sido Saramago tão ingênuo a ponto de não saber que as narrativas mitológicas são simbólicas? Como diz o escritor americano-português Richard Zimler, especialista em religiões comparadas, o Velho Testamento não é prosa. É poesia.

"A história de Adão e Eva é poesia. Ou será que haverá alguém que acredite que Eva foi feita de uma costela de Adão?", questiona Zimler. "O autor desta narrativa do Antigo Testamento está a recorrer a uma linguagem simbólica – tal como poetas muito posteriores, como Shakespeare ou Camões, recorreram à linguagem simbólica para criar suas obras-primas. Ou será que algum leitor de Os Lusíadas pensa que os navegadores portugueses depararam com um temível gigante chamado Adamastor nas suas viagens da época das Descobertas?"

O escritor americano Jack Miles, prêmio Pulitzer de literatura, deixou bem clara essa distinção quando escreveu "Deus, uma Biografia". Ele informou ao leitor que não estava fazendo uma análise teológica, mas uma abordagem do protagonista do romance mais vendido da História: a Bíblia. Ou seja, o Deus do livro de Miles é uma personagem literária. Arrogante, invejoso, cheio de defeitos humanos, mas uma personagem que é produto da compilação de histórias feita na Bíblia. Muito diferente do tratamento que Saramago lhe dá em "Caim".

Pena que Saramago, o escritor brilhante, tenha sofrido dessa cegueira voluntária. Fico mais perplexo ao ver que muitos admiradores dos livros de Saramago admirem também seus comentários.

É fácil usar belas palavras para fazer comparações irresponsáveis. Difícil é ter discernimento para entender que nenhum prêmio – nem mesmo o Nobel – garante a um bom ficcionista o dom de distorcer a realidade.


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dale, Brasil!! Y dale, Argentina!


Ontem fui ver o jogo da Seleção no bar Me Leva Brasil, um reduto verde-e-amarelo na Plaza Armenia, em Palermo. Havia pelo menos uns 300 brazucas com bandeiras, camisetas, pandeiros...

Não sou nacionalista e não ligo muito pra futebol, mas confesso que me fez bem torcer entre os compatriotas e cantar "sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor!!"

Acho que estava sentindo falta dessa alegria. Aqui o pessoal não costuma festejar nas ruas depois dos jogos da Argentina. Alguns vão pro Obelisco, outros se encontram na Acoyte com Rivadavia, Cabildo com Juramento ou na a esquina mais famosa do bairro - mas só nas fases finais dos campeonatos. É como no rèveillon: a coisa é mais caseira. E com o tempinho ruim que tem feito, não dá pra ficar escutando cumbia no Obelisco. Melhor ficar em casa, mesmo.

Sei que todo mundo no Brasil está desapontado com a atuação da Seleção contra a Coreia do Norte. Eu achei que foi o melhor jogo da Copa até agora (será influência da saudade?). Os outros jogos me pareceram mornos, retrancados, chatos, salvo a goleada da Alemanha.

Amanhã tem jogo da Argentina, vou torcer pra celeste-y-blanca. Enquanto Brasil e Argentina não se enfrentam, vou torcendo pros dois. Assim tenho o dobro de chance de ganhar.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Gol contra

Ao firmar o acordo nuclear e rejeitar as sanções contra o Irã, o Brasil ficou ainda mais distante de uma vaga permanente no Conselho de Segurança.

Aconteceu o que todo mundo esperava: dos 15 membros do Conselho de Segurança da ONU, apenas 2 votaram contra novas sanções econômicas e militares ao Irã. Justamente Brasil e Turquia, os patrocinadores do acordo nuclear que não passou de uma pantomima - embora tenha sido comemorado por Lula como uma "vitória" da diplomacia brasileira.

Nem o Líbano votou contra as sanções. Preferiu se abster, apesar da influência que o grupo pró-iraniano Hezbolá exerce no governo. A Rússia, tradicional aliada de Teerã, anunciou que vai congelar o contrato de entrega de mísseis terra-ar ao governo de Mahmoud Ahmadinejad.

A lógica turca

É fácil entender as razões da Turquia. Embora seja integrante da OTAN, a aliança militar ocidental, ela passa por um progressivo ressurgimento islâmico. O primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, já militava no islamismo (o islã político) desde que era prefeito de Istambul, no início dos anos 90. Seu atual partido, o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), é uma das tantas organizações islamistas que questionam o caráter secular do país.

Para o AKP, as tentativas frustradas de entrar na União Europeia são a prova de que a Turquia deve abandonar o Ocidente e voltar a ser o centro do islã. Por essa lógica, a Turquia deve recuperar a forma de um califado (estado islâmico), tal como o Império Turco Otomano foi entre 1517 e 1922 - quando o líder Kemal Ataturk separou o estado da religião e transformou a Turquia numa república secular.

Essas duas forças - o "euroceticismo" e o ressurgimento islâmico - motivaram os recentes contatos de Erdogan com o Hamas e a Síria. Também ajudam a explicar as fissuras na relação com Israel e o flerte com Ahmadinejad. A Turquia certamente teme que o Irã desenvolva armas nucleares, mas seu apoio ao regime iraniano deu a ela maior projeção no mundo islâmico. A popularidade de Erdogan nunca foi tão alta entre os jovens de Beirute, Damasco ou Rabat.

Mas... e o Brasil?

Que interesses ele defende ao apoiar o Irã? Que benefícios sua diplomacia obteve ao selar o acordo nuclear? Até agora, o país só conseguiu se isolar e tornar ainda mais distante uma antiga aspiração de Lula: o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Liderança a qualquer preço?

Lula se apresenta como mediador de conflitos, mas o que faz é defender o lado "amigo". Nem que precise ficar calado ante graves violações de direitos humanos.


(Publicado no "Estado de Minas" em 30 de maio de 2010)


O Brasil tem desenvolvido uma política exterior claramente voltada à sua consolidação como um novo líder internacional. O que não está claro, contudo, são os aliados que vai escolher em sua ânsia por maior protagonismo. Estreitar laços com regimes inescrupulosos pode colocar em risco o projeto brasileiro de integração sul-americana e isolar o país no cenário internacional.


O exemplo mais recente desse duplo revés é o acordo nuclear com o Irã. Pelos termos firmados, Teerã se comprometeria a enviar à Turquia 1200 kg de urânio enriquecido a 3,5% em troca de 120 kg de urânio enriquecido a 20% – destinados a pesquisas médicas. O acordo foi celebrado como “uma vitória” pela diplomacia do presidente Lula, mas recebido com ceticismo pela comunidade internacional. Dos 15 membros do Conselho de Segurança da ONU, apenas 3 foram contrários a novas sanções contra o Irã: Brasil, Turquia (co-patrocinador do acordo) e Líbano, onde a milícia pró-iraniana Hezbolá participa do governo.


Até mesmo Rússia e China, tradicionais sócios de Teerã, se alinharam com a posição ocidental por temor de que o regime dos aiatolás esteja ocultando a intenção de fabricar armas atômicas. Seria ingênuo pensar que o Irã não continuará investindo em seu projeto nuclear, iniciado antes da Revolução Islâmica de 1979. O próprio governo iraniano anunciou, após o acordo, que continuará enriquecendo urânio.


Atentado à AMIA


A iniciativa do Brasil também gerou mal-estar em seu principal parceiro estratégico na América do Sul, a Argentina. A Justiça do país vizinho acusa o Irã de ordenar, financiar e planejar o atentado terrorista contra a sede da AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina), em 1994, que deixou 85 mortos e centenas de feridos. Segundo a Suprema Corte argentina, o ataque foi executado pela Jihad Islâmica, braço armado do Hezbolá.


A pedido de Buenos Aires, a Interpol mantém ordem de captura internacional para oito ex-funcionários iranianos, entre eles o ex-presidente Ali Hafsanjani. O Irã se recusa a extraditá-los. Lula ignorou os reiterados apelos do vizinho ao apertar a mão do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad – um líder que nega a existência de homossexuais em seu país do mesmo jeito que nega o Holocausto.


UNASUL: outra instituição de papel?


O Brasil é o grande patrocinador da UNASUL (União Sul-Americana de Nações), que reúne 12 países e aspira a promover a confiança e a estabilidade na região. É nesse marco institucional que o Brasil pretende criar o Conselho Sul-Americano de Defesa. Mas a UNASUL corre o risco de virar mais uma instituição de papel ante as atitudes de seu principal fomentador.


De fato, o Brasil tem sido no mínimo ambíguo com relação ao conflito armado entre o governo colombiano e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Na crise de 2008 entre Colômbia, Equador e Venezuela – a mais grave da região desde o conflito entre Peru e Equador, em 1995 –, Lula se apresentou como mediador mas terminou condenando o presidente colombiano, Álvaro Uribe. Isso ajuda a explicar por que a Colômbia hesita em participar de um aparato de defesa comum.


O Brasil também se postulou para mediar a crise em Honduras, mas o que fez foi apoiar um dos lados da contenda. Como diz o cientista político José Augusto Guilhon de Albuquerque, sua prioridade do país ao intervir no exterior não tem sido preservar a democracia e a ordem constitucional, mas defender os “amigos”.


Nem que para isso precise reduzir os protestos pela liberdade no Irã a uma briga entre flamenguistas e vascaínos. Ou que se mantenha calado – como o Itamaraty costuma fazer – ante graves violações de direitos humanos em países como Sudão (que perpetra um genocídio na região de Darfur), China, Líbia e Cuba. Lula inclusive condenou a greve de fome de presos políticos cubanos, comparando-os a bandidos comuns brasileiros.


Agora, o presidente brasileiro ambiciona solucionar o conflito israelense-palestino. Como se, para selar a paz, bastasse sentar com os dois lados e tomar um café – ou uma cerveja – juntos.

domingo, 6 de junho de 2010

Brasil 0 x 1 Argentina

Já que estamos em clima de Copa do Mundo, achei legal recordar esse texto que apareceu na seção Superpolêmica da Super, em abril de 2005. Nunca recebi tantas manifestações de leitores – vários me xingaram de traidor, ingênuo, estúpido e outras cositas más. Mas outros se sentiram identificados com minhas percepções, dizendo “puxa, sempre quis dizer isso!” Em homenagem a todos eles:

É difícil de acreditar, mas enquanto esculhambamos os argentinos, eles têm enorme carinho por nós

por Eduardo Szklarz

É a cena brasileira por excelência. No bar, na casa de amigos, tanto faz. Basta eu dizer que estou morando na Argentina para que todos lancem um olhar surpreso, misto de escárnio e piedade. Argentina? Mas que diabos você está fazendo lá com aqueles insuportáveis?? Já escutei de tudo. Que os argentinos são os europeus que não deram certo, que são bando de arrogantes, que nos chamam de “macaquitos” e por aí vai. A maioria diz isso sem nunca ter conhecido um legítimo exemplar dessa espécie controvertida. Não importa. Ser brasileiro requer o cumprimento de apenas três dogmas: gostar de feijão, acreditar piamente que Pelé é melhor do que Maradona e ter birra de argentino.

Intrigado com a polêmica, parti para uma pesquisa de campo. Queria investigar o que existe debaixo daqueles (montes de) cabelos. Nesses dois anos em solo inimigo falei com gente de todo tipo: taxistas, médicos, padeiros, artistas, estudantes, garçons... e confirmei minha hipótese. Parece difícil de acreditar, mas enquanto esculhambamos os argentinos, eles têm enorme carinho por nós. Não é mera impressão minha. A simpatia pelo Brasil está nas televisões, escolas, centros culturais. Quando sai comigo à noite, um amigo que morou no Brasil só fala em português e se finge de brasileiro para ser bem tratado – inclusive pelas mulheres. As ruas estão cheias de bandeiras brasileiras e a moda aqui é usar sandália havaiana. Seja sincero: você sairia por aí usando chinelo com bandeira da Argentina?

Seria cômodo dizer que essas diferenças refletem as contradições entre o tropicalismo e o europeísmo. Ou que é tudo fruto de nossos desencontros linguísticos e históricos. Mas me permitam ir direto ao ponto: os brasileiros pararam no tempo. Insuflado por locutores e comentaristas, o antiargentinismo extrapolou o mundo do futebol e talvez seja hoje o único caso de unilateralismo brasileiro. É produto de um Brasil tacanho, preconceituoso. No fundo, dizer “odeio argentinos” não é menos discriminatório que dizer “odeio negros” ou “odeio homossexuais”. Quem persegue boleiros argentinos simplesmente por serem argentinos não pode reclamar quando espanhóis xingam Roberto Carlos não por suas qualidades como jogador mas pela origem mulata.

Sempre seremos rivais no futebol, mas não precisamos limitar nossa relação à velha briga boleira Os argentinos, mais inteligentes, já se deram conta disso. Eles cantam as músicas dos Paralamas do Sucesso, jogam capoeira, viajam pelo Brasil e estão aprendendo português. As rádios dedicam programas à nossa música. Charly Garcia, o cantor mais popular do país, conclama os argentinos a levantar o astral e se espelhar em nós, lembrando que la alegría no es solo brasilera na música “Yo no quiero volverme tan loco”. Os brasileiros mal sabem citar uma banda argentina. Mas adoram ficar exaltando a esperteza do samba ante a melancolia do tango – mesmo sem nunca ouvido falar nas chatinhas, mas festeiras, cumbia e chacarera.

Como todo país de dimensões continentais, é natural que o Brasil seja autocentrado. Mas mesmo os Estados Unidos são mais permeáveis à cultura mexicana do que nós em relação à dos nossos vizinhos. O brasileiro comporta-se igual a um caipira americano, daqueles que acham que a capital do Brasil é, ironicamente, Buenos Aires.

O erro está em concebermos sociedades estáticas. Durante um tempo, a Argentina parecia de fato um pedaço da Europa por estas bandas pobres. No início do século XX, entraram quase 300 imigrantes europeus para cada mil habitantes, o triplo da média americana. Os salários no país superavam os da Inglaterra. Talvez venha daí a arrogância que gerou antipatia no resto do continente. Mas se existe algo positivo nas crises econômicas que os argentinos têm vivido é a maior consciência de serem latino-americanos – até porque os imigrantes de hoje vêm da Bolívia, Peru e Paraguai.

A rivalidade Brasil x Argentina pode até existir entre alguns líderes políticos e militares, mas não entre os povos. Porque rivalidade, segundo o dicionário, significa competição, oposição, luta. E não há nada disso do outro lado da fronteira. Somos nós que estamos tentando provar que o ditado “se um não quer, dois não brigam” está errado. Estamos empenhados em arranjar confusão com um povo que só quer se divertir conosco.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Por favor, criem o estado palestino!

Ele não é apenas uma reivindicação legítima de seu povo. É também uma ideia poderosa.

Que seja em Gaza e na Cisjordânia, que seja nas fronteiras prévias a 1967 ou seja lá que forma ele tome. Mas que seja um ESTADO com todas as letras: com plenos direitos para seus cidadãos e, de uma vez por todas, com plenas obrigações aos seus governantes.

Para criar um estado, é preciso deixar de lado os gritos de guerra e arregaçar as mangas. É preciso proteger os habitantes, garantir serviços básicos, controlar as fronteiras e reconhecer o direito do país vizinho de existir. Ao contrário das revoluções e dos atos heróicos, a construção do estado é silenciosa. Não gera mártires nem manchetes apaixonadas na imprensa.

Faz décadas que ouvimos a mesma desculpa: os palestinos vivem na pobreza, em condições precárias... e tudo por causa de Israel. Como é que vão construir um estado? O que ninguém diz é que os palestinos já receberam mais ajuda per capita do que os europeus com o Plano Marshall. Que o líder palestino Yasser Arafat figurava na lista dos milionários da revista Forbes, enquanto sua gente vivia em campos de refugiados. E que o estado palestino poderia ter sido criado bem antes da ocupação israelense, em 1967, e também depois do que resta dela – como explico abaixo.

Oportunidades perdidas

Nas idas e vindas do conflito do Oriente Médio, o estado palestino teve pelo menos 3 chances de ouro pra sair do papel. Quando o mundo inteiro esperava que a coisa ia deslanchar, vinha a decepção – e uma nova onda de violência.

Tem sido assim desde os anos 30, quando a Palestina ainda era um protetorado britânico. Em 1937, ante os crescentes confrontos entre árabes e judeus, uma delegação inglesa (a Comissão Peel) recomendou a divisão daquela terra em 2 estados: um árabe e um judeu. Um enclave internacional uniria os lugares sagrados de Belém e Jerusalém ao Mediterrâneo (veja o Mapa 1). Os árabes boicotaram o plano, que foi por água abaixo.

Em 1947, veio nova chance: a Assembléia Geral da ONU votou pela partilha da Palestina em 2 estados (veja o Mapa 2). Os judeus aceitaram e declararam a independência de Israel, mas os palestinos recusaram. Gaza e Cisjordânia – que correspondiam em boa parte ao futuro estado palestino votado pela ONU – ficaram sob o controle do Egito e da Jordânia até serem ocupadas por Israel, na guerra de 1967. Ou seja: durante quase 20 anos, Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental estiveram inteirinhas em mãos árabes, mas o estado palestino não foi criado.

A terceira oportunidade chegou em 2000, quando o presidente americano Bill Clinton promoveu uma cúpula entre Arafat e o então premiê israelense Ehud Barak em Camp David, nos EUA (veja o Mapa 3). O resultado? Água de novo.

Por que não foi criado?

Pra muita gente, tanta decepção é fruto da “aliança incondicional” entre Israel e EUA. Ou é culpa do governo “ultra-direitista” de Benjamin Netanyahu. Outros acusam os “malvados soldados israelenses”. E há que desconfie que é tudo obra de uma “conspiraçãojudaico-capitalista global” ou coisa parecida.

Deixando as fábulas de lado, é verdade que Netanyahu parece não ter nenhum interesse no estado palestino. Mas é também verdade que ele só ganhou as eleições porque 10 anos atrás, em Camp David, a esquerda israelense apostou todas as fichas no acordo com os vizinhos. Não era a solução ideal para nenhum lado, mas era a chance que ambos tinham de ver o processo de paz virar realidade. Barak ofereceu dividir Jerusalém, algo impensável para a atual coalizão no governo. Mas Arafat rejeitou a proposta, do mesmo jeito que os palestinos rejeitaram o plano da Comissão Peel e a Partilha da ONU.

Com o fracasso de Camp David, a esquerda israelense saiu desmoralizada e a direita voltou ao poder. O que fez Arafat? Estimulou a 2a Intifada... e o estado palestino continuou no papel.

É fácil entender por quê. O estado palestino não é apenas uma reivindicação legítima de seu povo. É também uma ideia poderosa. Uma utopia. Uma arma retórica indispensável para líderes políticos. Nas ditaduras da Liga Árabe, as queixas contra Israel são as únicas que podem ser expressas livremente nas ruas. Seus governantes precisam deixar o “estado palestino” no plano das ideias para manter a popularidade, mobilizar multidões e canalizar ressentimentos. Do contrário, serão eles o alvo da ira.

Até mesmo Bin Laden fala em nome dessa ideia, embora nada tenha feito para viabilizá-la na prática. Faz sentido: enquanto o estado palestino for apenas um grito de guerra, ele tem mais um motivo para atrair adeptos à sua causa.

As vantagens de não ser estado

Hoje, quem acusa cegamente Israel se esquece de que em 2005 o país pôs fim à ocupação a Gaza. Inclusive retirou colonos judeus à força de lá. Olha aí outra oportunidade! Me diz: você acha que o Hamas aproveitou pra construir um estado? Não! Ele eliminou os palestinos “traidores” do rival Fatah, instaurou uma teocracia em Gaza e começou a jogar mísseis na cabeça dos israelenses. Para quem deseja ser um estado, foi uma bela demonstração de coexistência, não?

Esse é o ponto: o Hamas fala em nome de um estado, mas se fortalece justamente na ausência da estrutura estatal. Tem sido assim desde 1987, quando foi criado. E ainda pode alegar que os abusos que comete contra seus cidadãos e os do país vizinho são todos realizados por milícias, militantes, forças paramilitares – e, claro, Israel. É uma bela ironia: os direitos humanos, que desde a 2a Guerra Mundial têm sido uma arma de proteção fundamental dos indivíduos contra os abusos do estado, se transformam numa faca de 2 gumes no conflito palestino-israelense. Por quê? Porque o estado palestino não existe.

Como Gaza não é um estado, o fundamentalismo islâmico se entrincheira atrás de civis para atacar o único estado criado nesse conflito, deixando-o como o violador de direitos humanos dos palestinos. Quem sai na rua para protestar contra a violência interna e a falta de liberdade imposta pelo Hamas? Quem sai na rua para protestar contra a corrupção da Autoridade Palestina na Cisjordânia? Por que olhar para os problemas internos se é mais fácil acusar Israel como o único responsável de todos os males? Os lideres sabem muito bem disso. Jogar com as regras do jogo de um eterno não-estado é fácil: você tem todas as reivindicações e nenhum dever.

É isso aí: se você é um não-estado, pode capitalizar em cima do sofrimento de seus não-cidadãos. O Hamas declarou que não deixaria entrar suprimentos da flotilha “humanitária” em Gaza enquanto Israel não libertasse até o último detido. Ou seja: os suprimentos destinados ao povo podem apodrecer, não importa. O que importa é acabar com a imagem do inimigo. E seguir com a luta. Isso, sim, dá um belo barulho que reverbera pelo mundo.

Portanto, por favor, criem o estado palestino! Isso vai significar que vocês abandonaram a destruição do outro para começar a própria construção. Vai significar que reconheceram o direito de Israel de existir. Vai mostrar que deixaram a ideia perfeita para edificar uma realidade, que sempre será imperfeita – como são Israel e os demais países. E vai mostrar para o mundo que, de agora em diante, vocês vão assumir o pacote inteiro: os direitos, mas também as obrigações. Será que sou eu quem está pensando numa utopia?


Fontes:

Mapa 1: http://www.passia.org/publications/bookmaps/page1.htm

Mapa 2: http://www.passia.org/palestine_facts/MAPS/1947-un-partition-plan-reso.html

Mapa 3: http://www.passia.org/palestine_facts/MAPS/wbgs_campdavid.html